A presença do Talibã na internet e o desafio da moderação de conteúdo pelas plataformas virtuais

(Foto: Zabi Karimi/AP)

O Afeganistão passa por uma severa crise humanitária. Com a tomada da capital, Cabul, em agosto de 2021, pelo grupo Talibã, instalou-se no território a premente ameaça estatal de violações aos direitos humanos. Não à toa um grupo de 400 afegãos solicitou acolhida humanitária no Brasil.

Nos termos do grupo Tech Against Terrorism, entidade lançada e apoiada pela Diretoria Executiva do Contraterrorismo da ONU que trabalha com a indústria global de tecnologia para combater o uso terrorista da internet, o Talibã foi incluído na relação das instituições cujo conteúdo digital deve ser banido ou restrito, em razão de ser uma organização que pratica violência indiscriminada contra civis.

O grupo recomenda que as plataformas consultem listas de designação de Estados democráticos ao implementar moderação de conteúdo e que, sempre que possível, avaliem grupos, atores e o conteúdo que eles produzem com base em suas próprias regras sobre terrorismo, extremismo violento e incitamento e/ou glorificação da violência.

A Tech Against Terrorism ajuda as plataformas a lidarem com essa questão, incluindo consultas e uma Plataforma de Compartilhamento de Conhecimento, que contém um repositório de símbolos e terminologia associados ao Talibã e outros grupos terroristas designados.

Geralmente, os conteúdos terroristas trafegam na internet por meio de perfis oficiais e não oficiais. As páginas oficiais costumam apresentar um grupo patrocinador e as não oficiais, por sua vez, são mantidas por apoiadores e simpatizantes que divulgam a respectiva propaganda. A internet se apresenta, portanto, como uma porta de entrada para propagandas extremistas e outros conteúdos radicais por meio da difusão de links, propaganda, notícias e fóruns de discussão.

Há precedentes de moderação de conteúdo envolvendo atores estatais, incluindo o Instagram banindo a Guarda Revolucionária Iraniana (IRGC), o Facebook banindo os militares de Mianmar e o Facebook, Twitter, YouTube e outros desativando as contas do ex-presidente dos EUA, Donald Trump.

O Talibã é designado como organização terrorista pela União Europeia e pelo Canadá e incluído na lista de sanções dos EUA. A moderação, no entanto, não caracteriza atividade fácil, especialmente para plataformas menores que podem não ter plena capacidade de identificar e avaliar o potencial material do Talibã, além da ausência de consenso internacional sobre o status da organização.

A própria natureza da internet tende a favorecer a propagação de conteúdos extremistas em seus canais por ser um veículo de fácil acesso, com regulamentação descentralizada e que alberga a sensação de anonimato. Ademais, é possível alcançar grandes audiências e permitir um fluxo rápido de informações multimídia a baixo custo. As redes sociais possibilitaram novas formas de colaboração, discussão e difusão de conteúdo, além da própria capacidade de armazenamento de dados e informações.

As plataformas usualmente são utilizadas na comunicação com simpatizantes e as dificuldades no combate às organizações terroristas também estão ligadas com a natureza do sistema internacional, além de que a imensa quantidade de conteúdo gerado pelos usuários nos últimos anos aumenta a dificuldade operacional de controle sobre as informações disponíveis.

Desse modo, as plataformas tentam encontrar padrões de comunicação no conteúdo gerado por organizações terroristas, no intuito de moderar e remover conteúdo. A velocidade de inclusão das informações e a difusão de informações falsas, no entanto, é um elemento desafiador.

Redes sociais como o Facebook, Twitter e YouTube estão analisando suas políticas internas para lidar com as contas ligadas ao Talibã. Nesse panorama, o YouTube proíbe conteúdo de incitação à violência e também responde a outros pedidos para remoção de grupos radicais, além de ter encerrado todas as contas vinculadas ao Talibã.

O Facebook também tem se manifestado no mesmo sentido, por entender que o fato se enquadra na política de combate à organizações perigosas. O Facebook informou que possui colaboradores que falam as línguas dari (persa afegão) e pachto (afegão) no intuito de compreender o contexto local e alertar sobre quaisquer publicações que violem a política da rede social. A postura determinada pelo Facebook vale também para o Instagram e o WhatsApp, com a ressalva de que, no caso do WhatsApp, a criptografia impede que a empresa tenha acesso ao conteúdo das mensagens, podendo apenas bloquear telefones vinculados aos membros do grupo.

O Twitter, por sua vez, foi criticado por permitir que o porta-voz do Talibã, Zabihullah Mujahid, postasse sobre as medidas do novo governo e publicasse sobre a invasão de Cabul para seus mais de 400 mil seguidores.

Em que pese a plataforma procure agir sobre contas que glorifiquem a violência ou incentivem atos terroristas, ainda não houve um banimento geral das contas ligadas ao Talibã. Esse acontecimento desencadeou críticas oriundas dos apoiadores do ex-presidente dos EUA, Donald Trump, que teriam acusado a plataforma de não ter critérios para a restrição. Isso porque Trump estaria banido do Twitter desde janeiro, ao passo em que a conta do líder extremista estaria sendo tolerada.

A ascensão de ideologias e governos com divergências políticas, religiosas e étnicas é um fenômeno que gera conflitos em diversas áreas do mundo. Passamos a observar violências organizadas, que mesclam aspectos de guerra, crime organizado e violações de direitos humanos em larga escala, além de envolverem atores e conexões transnacionais.

Essa rede torna difícil separar impactos meramente locais ou globais e essa complexidade enseja uma série de desafios militares e não militares entre atores estatais, civis e privados. Além disso, o debate sobre a moderação de conteúdo na internet gera questionamentos no que tange à liberdade de expressão e, também, sobre a possibilidade de utilização dessas plataformas como um instrumento de denúncia e emancipação para os nacionais que vivem no território.

Se o avanço do Talibã na tomada do Estado afegão parece estar acelerado, o desafio de sua presença na internet ainda é uma questão a ser debatida, especialmente no que tange à uniformidade de tratamento dos conteúdos, das contas oficiais e das contas ligadas ao grupo. Isso reacende a discussão sobre o papel das redes sociais em face de consolidações de golpes de Estado, bem como na ocorrência de violações de direitos humanos.

No Brasil, o debate também tem recebido destaque, especialmente após a iniciativa do presidente Jair Bolsonaro de editar a medida provisória n. 1.068/2021, que alterava o Marco Civil da Internet e dificultava a moderação de conteúdo e de perfis em redes sociais.

A medida é preocupante, inclusive, pelo momento de sua edição: na véspera dos atos de protesto do dia 7 de setembro de 2021 e após a decisão do Tribunal Superior Eleitoral de suspender repasses financeiros a páginas de apoiadores do presidente que propagam notícias falsas. O ato normativo também foi tomado sem amadurecimento prévio da discussão e alijado de todos os setores interessados no problema.

Em que pese a medida provisória tenha sido devolvida pelo Congresso Nacional, o presidente enviou novamente aos parlamentares um projeto de lei com os mesmos princípios da referida MP, o que continua sendo um motivo de alerta. Isso porque a moderação de conteúdo é especialmente relevante no combate de práticas de desinformação e discurso de ódio, de modo que impedir essa conduta pode trazer prejuízos para os usuários e, além disso, causar impactos extremos no ambiente democrático. 

A questão da moderação de conteúdo e o contexto internacional contemporâneo cria questionamentos sobre a possibilidade de uma empresa de tecnologia norte-americana banir grupos que assumem oficialmente o Estado em alguma região do globo, bem como sobre quais seriam os respectivos parâmetros de moderação. Isso também suscita reflexões sobre o poder decisório da plataforma virtual, tendo em vista que a moderação, nesses casos, pode contribuir ou prejudicar a reputação e a legitimidade de atores políticos.

Trata-se de uma disputa de equilíbrio de poderes que compete não somente aos atores que estão diretamente envolvidos no problema, mas também à toda a sociedade civil. Em um mundo globalizado, o que acontece no Afeganistão interessa não somente aos afegãos, mas a toda uma audiência que acompanha, curte e compartilha (ou não) as publicações divulgadas. Se a internet pode nos aproximar, ela também pode nos afastar. Resta-nos saber como lidar com esses caminhos.

Sugestão de filme sobre a vida no Talibã: Olhos de Cabul (2019). Direção: Zabou Breitman e Eléa Gobbpe-Mévellec.


Gabriela Buarque é advogada e mestranda em Direito pela Universidade Federal de Alagoas. Pesquisadora no Projeto Privacy Lab do Centro de Direito, Internet e Sociedade (CEDIS) do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e na equipe de inteligência artificial do Laboratório de Políticas Públicas e Internet (LAPIN).


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Advogada e pesquisadora. Mestra em Direito pela universidade Federal de Alagoas. Coordenadora do GT de inteligência artificial e novas tecnologias no Laboratório de Políticas Públicas e Internet (LAPIN) e Secretária-Geral da Comissão de Inovação, Tecnologia e Proteção de Dados da OAB/AL.

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