À luz da “Constituição Cidadã”: constatações e perspectivas após 33 anos

(Foto: Rafaela Biazi)

“Não é a Constituição perfeita, mas será útil, pioneira, desbravadora; será luz, ainda que de lamparina, na noite dos desgraçados”.

(Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Nacional Constituinte)

No último dia 05 de outubro, a Constituição Federal de 1988 completou trinta e três anos e, possivelmente, jamais esteve sob tamanho enfoque e questionamento.

Reformada 111 vezes por meio de emendas constitucionais – além das 6 emendas de revisão –, a Constituição, cuja promulgação foi o grande marco da redemocratização no Brasil, está no centro dos debates acerca de temas como a erradicação da miséria e o nosso modelo de federalismo.

Se, para Ulysses Guimarães, a Constituição de 88 seria lamparina, é fato que, de lá para cá, a noite dos desgraçados não findou; contudo, à luz da Constituição Federal de 88, talvez a escuridão tenha diminuído.

Em primeiro lugar, a Constituição Federal corporifica uma proposição fundamental no constitucionalismo contemporâneo. Se, na linha de Habermas, “não há Estado de Direito sem democracia”, tampouco é possível, nos dias atuais, existir Estado de Direito sem um corpo fundamental de normas.

Limitando o poder e, ao mesmo tempo, legitimando-o ao traçar os contornos de seu exercício, a Constituição brasileira carrega nas costas o peso de sustentar uma democracia jovem que se tem demonstrado frágil, não só combalida por rupturas institucionais, mas também, quiçá diuturnamente, sujeita a constrangimentos e ameaças.

Apesar da persistência dos problemas estruturais que engrossam o caldo da instabilidade jurídica e política, sob a batuta do “texto magno”, o país avançou: tomemos como exemplo o marcador de analfabetismo, que solapava a afrontosa marca de 25% da população em 88, e agora atinge 6,6%, em dados de 2019, de acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua Educação.

Isto, por óbvio, não se deu apenas por força do poder constituinte – mas sua importância não pode ser desprezada ao estatuir possibilidades jurídicas até então inexistentes, formulando uma carta simbolizada pelo ecletismo de ideologias e valores. Ao fundamentar a República sobre, dentre outros princípios, o pluralismo político, a Constituição assenta as bases para a liberdade de expressão e demais direitos individuais.

Mas não só. Com forte preocupação social, a CF/88 fortaleceu as garantias fundamentais e adotou um caráter fortemente dirigente, na tentativa de, concretizando os objetivos previstos em seu art. 3º, garantir aos brasileiros condições materiais adequadas não apenas a sua sobrevivência, mas ao pleno desenvolvimento das capacidades humanas.

Nem tudo, todavia, são flores – ou luzes. Seu texto, minucioso e analítico, demanda constantes alterações, as quais, como vimos, já contabilizam 117 mudanças. A opção por constitucionalizar diversos temas que, a rigor, não seriam materialmente constitucionais, por vezes enrijece excessivamente o debate público, acabando por criar uma “colcha de retalhos” pouco harmônica e acessível, até mesmo, aos operadores do Direito.

O Poder Executivo monocrático, centralizado na figura do presidente, também tem sido objeto de inquirições, mormente quando, no curto espaço de vigência do texto constitucional, o país já enfrentou dois traumáticos processos de impeachment – e, atualmente, já foram enviados outros 138 pedidos ao presidente da Câmara dos Deputados.

Além disso, a complexa repartição de competências promovida pelo constituinte tensiona, constantemente, a forma federativa de Estado que, apesar de constar como cláusula pétrea, é alvo de um sem-número de investidas, dúvidas e deturpações, a exemplo das diversas demandas ajuizadas perante o Supremo Tribunal Federal relativas às medidas sanitárias adotadas por Estados e Municípios no combate à pandemia da Covid-19.

No contexto atual, fazendo um balanço do desempenho e efetividade da Constituição Federal desde 1988 até os dias atuais, é certo afirmar que ela tem, sim, seus defeitos. Contudo, diante dos inéditos avanços logrados sob sua regência, bem como tendo em vista a fragilidade destes e, por último, da própria democracia (uma tendência, lamentavelmente, mundial), talvez calhe recordar um outro excerto do discurso de Ulysses:

“A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca”.


Mariana Melo é mestra em Direito pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL). LLM em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Professora de Direito Constitucional e Direitos Humanos. Advogada licenciada. Pesquisadora no GPPJ – Grupo de Pesquisa em Pragmatismo Jurídico, Teorias da Justiça e Direitos Humanos.

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Mestra em Direito pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL). LLM em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Professora de Direito Constitucional e Direitos Humanos. Advogada licenciada. Pesquisadora no GPPJ - Grupo de Pesquisa em Pragmatismo Jurídico, Teorias da Justiça e Direitos Humanos.

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