A MP das Fake News e uma nova declaração de independência do ciberespaço

(Foto: Connor Danylenko/Pexels)

Em meio a tantas discussões e alvoroços rodeando a chamada “MP das Fake News”, que alterou recentemente o Marco Civil da Internet, eu me senti num daqueles momentos de looping infinito da história humana, em que determinados acontecimentos se repetem tal qual os anteriores, de tempos em tempos.

Assistindo aos recentes episódios do nosso picadeiro nacional, eu me lembrei de forma vívida de um acontecimento do ano de 1996, época de ouro da escalada da Internet comercial, ocorrido durante o Fórum Econômico Mundial de Davos, que tinha como um dos principais pontos da pauta a discussão da globalização e dos seus efeitos.

A publicação da Declaração de Independência do Ciberespaço, escrita por John Perry Barlow, numa clara analogia à Declaração de Independência dos Estados Unidos da América.

Barlow, um dos fundadores da Electronic Frontier Foundation (EFF), organização civil sem fins lucrativos que defende os direitos digitais, a privacidade, a liberdade de expressão e a inovação no ambiente virtual, escreveu seu texto como um sinal de protesto a uma recém editada medida do Governo de Bill Clinton, o Telecommunications Act de 1996.

Esse ato tinha, supostamente, o objetivo de aumentar a concorrência no mercado de telecomunicações, em especial, na Internet, mas, na prática, os resultados observados indicaram uma grande concentração de poder na mão de algumas corporações, formando verdadeiros monopólios. 

A resposta de Barlow – apesar do caráter tipicamente teatral do autor – foi enfática e traz conceitos que parecem ter sido escritos para os recentes acontecimentos brasileiros, encaixando-se perfeitamente nos dias atuais.

“Governos do Mundo Industrial, seus gigantes cansados de carne e aço, eu venho do ciberespaço, a nova casa da Mente. Em nome do futuro, eu solicito que vocês do passado nos deixem em paz. Vocês não são bem-vindos entre nós. Vocês não detêm soberania onde nos reunimos”.

O manifesto retrata a concepção inicial dos criadores da Internet: a ideia de que a rede deve ser neutra e livre de qualquer regulação estatal, para garantir a liberdade de informações além das fronteiras.

Os fundadores acreditavam que a própria rede deve se regular por meio dos seus usuários, baseando-se na colaboração, no consenso e na ética, como um verdadeiro reino paralelo, além do mundo real.

Nessa lógica, a única lei que deve ser respeitada no reino do ciberespaço é a chamada Golden Rule ou Regra de Ouro, em tradução livre, que significa, basicamente, lembrar do humano ou, em outras palavras: os usuários do ciberespaço devem lembrar que há outros humanos conectados na rede.

Essa simples definição, se analisada a fundo, traz consigo vários códigos morais, crenças sociais e até religiosas e que podem ser resumidas na máxima de tratar o outro como gostaria de ser tratado, numa acepção da ética da reciprocidade.

Para além da concepção ética e moral da Regra de Ouro e das chamadas Netiquette Guidelines[1], as regras de etiqueta de comportamento online, que terão um espaço próprio de análise nessa coluna (fica a dica das cenas dos próximos capítulos!), o que parece saltar aos olhos são as semelhanças das situações: uma regulação estatal com um suposto propósito, mas que, na verdade, está disfarçando a sua real intenção e uma forte reação da sociedade civil, em especial daqueles defensores dos direitos digitais e do ambiente livre e colaborativo da rede.

A MP das Fake News, como a própria alcunha já acusa, foi editada com o pretexto de melhor regulamentar a Internet e de proteger os direitos dos usuários, mas, no seu âmago, trouxe entraves para a remoção de conteúdos falsos ou de desinformação – conhecidos como fake news – publicados na rede não só por usuários humanos, mas também por robôs.

Independentemente das discussões políticas que permeiam o tema e que não são o escopo dessa minha análise, o que merece críticas é a tentativa de regulamentação, por meio de um ato exclusivamente presidencial e sem qualquer tipo de participação da sociedade civil, de um tema tão sensível e atual, talvez o mais complexo da atualidade e ainda com amplas e calorosas discussões em curso, de forma sumária, para não dizer rasteira.

O sentimento ora externado parece ser o mesmo que emana dos demais órgãos republicanos do País, tanto que o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional derrubaram a eficácia da referida MP, em caráter liminar, sob a guarida da inconstitucionalidade da medida. 

Ao fim, entendo que a questão que se apresenta é não apenas de regulamentação da Internet e de defesa dos direitos dos usuários, sob uma acepção simplista do tema, mas sim de discussão da ética do comportamento online e das bases que devem ser seguidas pela sociedade civil para construção de uma sociedade mais plural, inclusiva e, sobretudo, bem-informada e educada.

Para mim, há tempos que o Direito e a Ética deixaram de ser sistemas isolados… a bem da verdade, se queremos uma sociedade melhor, parece-me que a melhor opção, até agora, é voltar para as discussões e os exemplos antigos e tentar aprender algo com isso.

[1] Para maiores informações, ver a íntegra da RFC 1855, que está disponível aqui. A leitura integral do texto é interessante para todos aqueles curiosos a respeito do tema, pois ela traz várias regras usualmente seguidas pelos usuários da Internet, sem sequer saber qual foi a origem de tal prática. Alguns exemplos são a sugestão de utilização de emoticons para dar uma característica mais sentimental à mensagem, a utilização de letras maiúsculas para dar a entonação de grito, dentre várias outras.


Nathália Grizzi é sócia titular da Área Empresarial de Martorelli Advogados, com especial foco em estruturação de novos negócios, operações de M&A e de investimentos, projetos de reorganização societária, planejamentos patrimonial e sucessório, reestruturação de capitais e negociação de contratos nacionais e internacionais. Entusiasta de novas tecnologias e da importância dos novos negócios na modulação e construção da sociedade, Nathália acredita na potência da interconexão, da diversidade e do compartilhamento de experiências e conhecimento para a construção de uma sociedade mais inclusiva.

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