A revolução digital não se restringe ao consumo, indústria e relacionamentos. Atualmente, se estende ao campo das operações militares, especialmente na Rússia, país que possui intensa presença hacker.
A guerra digital, ao contrário da guerra tradicional, também não se restringe ao espaço geográfico, o que impõe desafios ainda maiores no trato das perdas inevitáveis que o contexto bélico acarreta.
Big techs como Meta, Google e Apple passaram a retirar seus produtos da Rússia em resposta à invasão na Ucrânia. A população russa também sofre com as represálias digitais, considerando que grandes plataformas digitais, empresas e operadoras de cartão de crédito já anunciaram a suspensão de lives, serviços e conteúdos no país.
Além disso, o governo da Ucrânia selecionou empresas tecnológicas para pedir o banimento na Rússia e a lista de aderentes vem crescendo cada vez mais, o que vem dando força ao movimento que pede o banimento integral da Rússia na internet global.
Esse pedido de banimento não foi bem recebido pela Corporação da Internet para Atribuição de Nomes e Números (ICANN), que é um dos órgãos encarregados de regular a internet. Isso porque a ICANN prega por uma missão de neutralidade e apoio à internet em uma perspectiva global, o que a afasta de medidas punitivas e restritivas.
A postura da ICANN foi apoiada por algumas organizações, como o Electronic Frontier Foundation (EFF), que teria declarado que a guerra não é um período para causar desordem na internet e que a interferência nos protocolos fundamentais de infraestrutura teria consequências perigosas e duradouras.
Entre essas consequências estaria o risco de privar a comunidade russa de uma ferramenta de compartilhamento de informações poderosa, além de comprometer a privacidade e a segurança das pessoas.
A internet, inclusive, tem um papel na forma como os cidadãos ucranianos estariam enfrentando esse conflito, por meio de uma resistência com o apoio de tecnologias. Situações semelhantes já ocorrem desde a Primavera Árabe, oportunidade em que a internet foi mobilizada para divulgar acontecimentos em tempo real e denunciar violências.
O ativismo digital possui papel fundamental na consecução de ações de ajuda humanitária e na implementação de medidas de resistência, além da possibilidade de canais de disseminação de informações e mobilização de protestos e mecanismos de resolução de conflito.
Nesse ponto, o site “formas reais de ajudar a Ucrânia sendo um estrangeiro” é um crowdsourcing criado pelo hub ucraniano Global Shapers, ligado ao Fórum Econômico Mundial, onde se reúnem possibilidades de apoio ao país, desde a doação de recursos até convocações de profissionais de tecnologia. A Ucrânia também lançou um site para recrutar estrangeiros para a guerra, o Fight For Ukraine. E não para por aí: até memes estão sendo disseminados.
A interceptação da comunicação do oponente é uma estratégia de guerra que, muitas vezes, pode determinar o lado vencedor. O próprio surgimento da internet se conecta com a ideia de proteção de informações estatais sigilosas, tendo sido posteriormente expandida e democratizada para todas as pessoas.
A rede que originou a internet foi criada nos EUA como fruto de pesquisas financiadas por militares estadunidenses em plena Guerra Fria. Isso também explica porque a discussão sobre a internet e a guerra na Ucrânia vem assumindo cada vez mais destaque.
O acesso à internet, assim, passa a ser crucial para o desenvolvimento de inúmeras atividades. Isso tem incrementado a tensão entre movimentos de banimento e movimentos de manutenção dos serviços na Rússia. Na Ucrânia, a internet assume espaço como mecanismo de ativismo digital humanitário. Um fato não se pode negar: a internet e as tecnologias têm dado novos contornos às guerras no século XXI.
As estratégias e o apoio estatal têm encontrado nesse campo mecanismos poderosos para potencializar seus objetivos e resultados, trazendo outros problemas cuja resolução não é tão simples.
A única conclusão possível é o incontestável impacto negativo da guerra para a sociedade civil. De toda forma, observar o modo pelo qual a internet e as tecnologias vêm transformando a compreensão e as manifestações da guerra é uma perspectiva da qual não podemos nos furtar.
Sugestão de seriado: O jogo da imitação (Morten Tyldum) (2014).
Gabriela Buarque é advogada e mestranda em Direito pela Universidade Federal de Alagoas. Pesquisadora no Projeto Privacy Lab do Centro de Direito, Internet e Sociedade (CEDIS) do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e na equipe de inteligência artificial do Laboratório de Políticas Públicas e Internet (LAPIN).