Poucos assuntos estão sendo mais comentados do que a compra do Cruzeiro pelo ex-jogador de futebol Ronaldo Fenômeno, cuja vida profissional foi iniciada no clube.
A transformação do Cruzeiro em Sociedade Anônima do Futebol e a compra por um grande investidor já era uma pauta que estava sendo bastante ouvida por quem acompanha os bastidores do futebol ou o mundo das fusões e aquisições, mas o anúncio do comprador pegou todos de surpresa.
Afinal, uma coisa é um clube ser comprado por um investidor bilionário, possivelmente de outra nacionalidade, outra é quando isso acontece por um dos grandes ídolos do futebol nacional.
Essa é a primeira compra que se deu sendo utilizada a Lei da Sociedade Anônima do Futebol, que serviu para instituir formas de criação e governança de Sociedades Anônimas de Futebol (SAF) para clubes de futebol profissionais.
A grande vantagem desta Lei é uma série de benesses para a renegociação de dívidas do clube, podendo trazer, teoricamente, bons frutos se aliada com um projeto de adimplemento bem executado, conforme falaremos mais adiante, além de possuir direito ao Regime de Tributação Específica do Futebol (TEF).
Apesar de já ter sido anunciada como compra, o que se firmou no momento foi um Memorando de Entendimentos, um contrato que as partes assinam para estabelecer estarem de acordo com os termos da compra. Após isto, é feita a Due Diligence, uma auditoria para averiguar se a situação da compra se assemelha ao que foi discutido no Memorando, para apenas depois serem assinados os contratos.
A negociação se deu pelo valor de 400 milhões de reais, por 90% da participação acionária da SAF pela Tara Sports (empresa que tem como único acionista, Ronaldo). Os outros 10% de participação acionária ficam com a associação Cruzeiro Esporte Clube.
Juridicamente, esta possibilidade existe por meio da cisão do departamento de futebol do clube, tendo sido todos os ativos e passivos correspondentes a este departamento transferido para a SAF.
Em outras palavras, a SAF vai gerir exclusivamente o departamento de futebol do clube, o que contempla uma gama de ativos como todos os contratos comerciais, de jogadores, transmissão de jogos ou participações em torneios, não contemplando os bens imóveis do clube, que continuarão como bens da associação.
Para que esta operação pudesse ser feita, foi necessária uma alteração no estatuto do Cruzeiro, que possibilitava apenas que se fosse vendida 49% da participação acionária do clube. Valor este que jamais deixaria o investidor na possibilidade de controlador do clube e inviabilizaria que se atraísse qualquer investimento, por ser temerário realizar aporte de dinheiro em um negócio que já se mostra com grandes dificuldades financeiras sem se ter o poder de controlador da operação.
Este valor de 90% não foi aleatório, sendo uma participação acionária necessária para se ter maioria não apenas de situações que necessitem de maioria absoluta, como daquelas que requerem um quórum ainda maior que esse, que poderiam ficar travadas caso a associação possuísse uma participação acionária muito grande.
Embora tenha participação deveras minoritária, a associação ainda tem participação suficiente para poder vetar possíveis decisões que iriam contra elementos tidos pelo clube como sensíveis, como mudanças na identidade visual ou o hino, ou possíveis estratégias futuras de reestruturação societária e até mesmo encerramento da empresa.
Assim sendo, esta operação se deu pela participação acionária que traz ao mesmo tempo segurança ao investidor, mas dá ao clube poderes para também exercer seu veto em pautas de maior relevância. Busca-se, assim, um equilíbrio de poderes entre os dois lados da operação, trazendo poder de gestão para a Tara Sports e dando à associação poder de veto naquilo que é necessário.
Outra questão que deve ser levada em consideração é que a SAF respeita um sistema organizacional complexo se comparado a outras Sociedades Anônimas, tendo que obrigatoriamente possuir um Conselho de Administração e um Conselho Fiscal, a fim de trazer maior transparência à gestão do clube.
A Tara Sports torna-se, assim, responsável solidária pela dívida de R$ 1 bilhão do Cruzeiro, e a SAF terá que destinar 20% de suas receitas e 50% dos dividendos para o adimplemento de dívidas. Essa estrutura não é nenhuma benesse, mas são dispositivos elencados na própria Lei em questão para fazer com que a SAF sirva ao propósito de arcar com as dívidas do clube.
A complicação que surge é que 60% do passivo do Cruzeiro deve ser adimplido em um prazo de seis anos, tendo quatro anos para pagamento da dívida restante caso atinja essa meta. Desta forma, a empresa de Ronaldo funcionaria como uma espécie de fiadora da dívida do clube, sendo a grande prioridade no atual momento da gestão a liquidação deste passivo, em virtude tanto do volume quanto do prazo de pagamento. Novamente, tudo disposição legal.
Muito embora o investimento total seja em um importe maior, no primeiro ano serão depositados o montante de R$ 80 milhões para pagamento de dívidas emergenciais, tidas como mais preocupantes.
Essa estrutura gera uma série de dúvidas sobre sua viabilidade, sobretudo a pergunta sobre se o clube conseguiria se manter competitivo com esses repasses e até mesmo a possibilidade de pagar uma dívida bilionária em pouco tempo. Contudo, discutir isto de forma pormenorizada fugiria do escopo do presente artigo.
Como dito anteriormente, o Cruzeiro é o primeiro caso de uso da SAF para atração de investidores e a lisura do processo poderá ser de grande relevância para podermos compreender melhor como se dá na prática este tipo de gestão, como referência positiva ou negativa, a depender do grau de sucesso.
Por si só, o instrumento é uma forma de atrair investidores por meio da transformação do clube em uma Sociedade Anônima. A legislação pode trazer dispositivos que tornem a corporação mais transparente, mas é o esforço da gestão que ditará se o Cruzeiro se tornará um referencial de um clube que soube aproveitar a oportunidade para se reestruturar ou insucesso que nos ajudará a interpretar as lacunas que a Lei da SAF nos traz, devido aos litígios judiciais que surgirão.
Guilherme Inojosa é advogado empresarialista e possui LLM em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas. Head Jurídico do Grupo SG, onde elabora organizações societárias e realiza due diligence de empresas, e do escritório Inojosa, Pavanelli e Barros – Advogados Associados, onde atua de forma contenciosa e consultiva.